Antimicrobianos na pecuária leiteira: como usá-los de forma consciente e responsável?

produção de leite e derivados desempenha um papel crucial na geração de empregos e na obtenção de renda, apresentando uma participação significativa na economia brasileira (Embrapa, 2020). Além disso, possui grande relevância no fornecimento de alimentos para a população e, por isso, é necessário que todos os produtores e profissionais envolvidos na cadeia produtiva assegurem que o leite e seus derivados atendam aos padrões nutricionais e não apresentem quaisquer riscos à saúde dos consumidores (Brasil, 2022a).Por outro lado, as vacas leiteiras podem ser acometidas por diversas enfermidades bacterianas, sendo os antimicrobianos essenciais para a manutenção da saúde e do bem-estar animal (Ajuda, Bond, Jewell, 2017). No entanto, seu uso sem levar em conta critérios técnicos e científicos, sem observar as boas práticas de utilização, pode fazer com que estas bactérias, antes suscetíveis, se tornem resistentes aos antimicrobianos. Esse processo é conhecido como resistência antimicrobiana (RAM) (Costa et al., 2013; Caudell et al., 2020; Campos et al., 2021), podendo ser capaz de causar grandes transtornos uma vez que afeta não apenas a saúde humana, mas também a saúde animal e o meio ambiente (OCDE, 2023), e assim dentro do contexto da Saúde Única (Figura 1).Figura 1. Conceito de Saúde Única, englobando as diferentes áreas da saúde.

Conceito de Saúde Única, englobando as diferentes áreas da saúde. 
Fonte: Elaborada pelos autores (2023).

A seleção de microrganismos resistentes é um evento que ocorre naturalmente, porém, a utilização dos antimicrobianos de maneira inadequada, seja na medicina humana ou veterinária, tem acelerado esse processo, gerando problemas críticos, como o aumento da morbidade, da mortalidade e dos custos com a saúde (Brasil, 2022a).

A maioria dos antimicrobianos utilizados mundialmente, também é destinada para uso animal (Van Boeckel, et al, 2017) e engloba o uso dos antibióticos, antiparasitários, antifúngicos e antivirais (Brasil, 2022b). Essa grande abrangência torna a pecuária um setor suscetível à propagação de genes de resistência, que podem ser identificados em produtos de origem animal, dado o uso frequente desses agentes no cotidiano das práticas clínicas e de manejo animal (Baron, 2014).

A resistência antimicrobiana, com destaque para a resistência aos antibióticos, representa um dos principais desafios da atualidade (WOAH, 2023). O seu uso indiscriminado exerce uma pressão seletiva, que impulsiona a disseminação dos mecanismos de resistência, não apenas à bactéria patogênica visada no tratamento, mas também, a outras que não são o alvo no momento (CFMV, 2021). Além disso, ao administrar antimicrobianos aos animais, parte do princípio ativo é excretado no ambiente, favorecendo o desenvolvimento de estirpes resistentes no solo e em ambientes aquáticos, com capacidade de infectar animais e humanos que entrem em contato com esses resíduos, conforme demonstrado na Figura 2 (Berendonk, et al., 2015).

Figura 2. Propagação dos resíduos de antimicrobianos e estirpes resistentes entre os humanos, animais e o meio ambiente.

Propagação dos resíduos de antimicrobianos e estirpes resistentes entre os humanos, animais e o meio ambiente.
Fonte: Adaptada de KICH (2023).

A resistência aos antimicrobianos é capaz de aumentar em até 50% o risco de determinado agente causar a morte do indivíduo, quando comparado com doenças causadas por microrganismos não resistentes e está classificada entre as dez principais ameaças globais à saúde pública, tamanha é a sua gravidade (WHO, 2023). Por outro lado, a ausência de descoberta de fármacos eficazes nos últimos vinte anos (Kalkreuter, et al., 2020) e o recuo das empresas farmacêuticas no desenvolvimento de novas moléculas de antibióticos gera preocupação, por não existirem novas “reservas” farmacológicas capazes de combater as superbactérias (WHO, 2023).

Parcerias globais para o combate à resistência aos antimicrobianos

Diante desse cenário, foi formada uma Aliança Quadripartite entre a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e, mais recentemente, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), com o compromisso de desenvolver estratégias para mitigar mundialmente a resistência antimicrobiana, por meio de um Plano de Ação Global (OPAS/MAPA, 2022).

Com o propósito de promover diretrizes para a utilização prudente e responsável dos antimicrobianos em animais, a OMSA procedeu a categorização dos antimicrobianos de importância veterinária, estabelecendo uma lista que se divide em Agentes Antimicrobianos Veterinários Criticamente Importantes, Agentes Antimicrobianos Veterinários Altamente Importantes e Agentes Antimicrobianos Veterinários importantes, a fim de orientar as decisões do médico veterinário para a prescrição de antimicrobianos (WOAH, 2021).

Em vista desse panorama, o Brasil ingressou junto à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) no projeto “Trabalhando Juntos para Combater a Resistência aos Antimicrobianos”, financiado pela União Europeia (UE). Assim, no País, foi realizada uma parceria entre o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o setor privado e instituições de ensino, pesquisa, inovação, para implementação do Plano Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no âmbito da Saúde Única (PAN-BR) que culminou, em 2018, na elaboração do Plano Nacional de Prevenção e Controle da Resistência Antimicrobiana no âmbito da Agropecuária (PAN-BR ABRO) (Brasil, 2022b).

Recomendações gerais para o uso consciente e responsável dos antimicrobianos 

Desde 2017, a OMSA promove a campanha mundial de conscientização sobre o uso racional dos antimicrobianos, chamada “Five Only” (Cinco Somentes), estabelecendo regras para a população em geral (Figura 3).

Figura 3. Pontos abordados na campanha mundial da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) para a conscientização sobre o uso dos antimicrobianos

Pontos abordados na campanha mundial da Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) para a conscientização sobre o uso dos antimicrobianos
Fonte: MAPA (2021).

 

Recomendações da OMSA para médicos veterinários para o uso consciente e responsável dos antimicrobianos na pecuária leiteira:

  1. Conduzir a avaliação clínica do animal e prescrever antimicrobianos somente quando necessário, fundamentando a prescrição na lista da OMSA de agentes antimicrobianos de importância para a medicina veterinária;
  2. Os antimicrobianos não devem ser empregados como substitutos das boas práticas agropecuárias e do manejo sanitário dos animais, devendo o profissional implementar, na propriedade, condições adequadas de higiene, biosseguridade e programas de vacinação com foco na prevenção das doenças;
  3. Sempre que possível, realizar testes de diagnóstico e testes para avaliar o perfil de sensibilidade das moléculas de antimicrobianos.
  4. Registrar junto ao proprietário as informações referentes ao histórico epidemiológico e ao uso de antimicrobianos na propriedade;
  5. Compreender os mecanismos da farmacodinâmica (atividade contra patógenos envolvidos) e farmacocinética (distribuição nos tecidos, eficácia no local da infecção);
  6. Instruir adequadamente o proprietário, ou colaborador da fazenda, acerca da administração adequada dos antimicrobianos, incluindo a dose utilizada, a via de aplicação e a duração do tratamento;
  7. Instruir adequadamente o proprietário, ou colaborador da fazenda, sobre o período de carência e o descarte do leite;
  8. Ser capaz de promover adaptações baseadas em estudos científicos, de modo a suprir os desafios de cada propriedade.

Além disso, é preciso que o médico veterinário se mantenha atualizado sobre as recomendações mundiais (CFMV, 2021).

Recomendações da OMSA para produtores para o uso consciente e responsável dos antimicrobianos na pecuária leiteira:

  1. Utilizar antimicrobianos somente quando prescritos por um médico veterinário;
  2. Seguir exatamente as recomendações sobre a dose e a duração do tratamento, prescritas pelo médico veterinário;
  3. Adquirir antimicrobianos somente de fontes autorizadas pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), que possam garantir a qualidade dos produtos;
  4. Desenvolver junto ao médico veterinário um protocolo sanitário, adaptado para o seu rebanho;
  5. Executar as boas práticas agropecuárias em sua propriedade;
  6. Manter os registros de todos os antimicrobianos utilizados no rebanho, bem como os resultados laboratoriais.

Uso consciente e responsável e responsável dos antimicrobianos: um dever de todos

Para preservar a eficácia dos antimicrobianos para a geração atual e as futuras gerações, é imprescindível que, além de minimizar a resistência antimicrobiana, as ações de combate estejam atreladas ao controle e prevenção de doenças infecciosas, a fim de reduzir a necessidade de utilização de antimicrobianos, por meio da implementação de programas sanitários efetivos (OCDE, 2023).

Os mecanismos de resistência continuarão a se desenvolver em virtude do processo natural de evolução dos microrganismos, portanto, é crucial que todos os envolvidos na pecuária leiteira estejam comprometidos com as diretrizes de uso consciente e responsável dos antimicrobianos, compartilhando o mesmo propósito de uso criterioso, desde produtores rurais a médicos veterinários.

CONVITE 

Você é Médico Veterinário e trabalha na bovinocultura leiteira?

Então, participe do nosso projeto de pesquisa: “Percepção dos médicos veterinários brasileiros sobre o uso de antimicrobianos na bovinocultura leiteira”.

O questionário é online, rápido e totalmente anônimo. Sua participação é fundamental para fortalecer o setor e promover tanto a saúde animal quanto a saúde pública.

Acesse o link e participe: https://forms.gle/nSvgbJAtGvbVHZgJA

Contamos com sua colaboração!

 

 

Agradecimentos

A Fapemig, Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Leite e Derivados – UFJF, ao Instituto de laticínios Cândido Tostes-EPAMIG e a EMBRAPA.

 

Referência bibliográficas

AJUDA, I; BOND, V; JEWELL, J. Antibiotic use in animals. The Business of Farm Animal Welfare, 1 ed. Routledge. 2017. 324p.

BARON, S.; JOUY, E.; LARVOR, E.; EONO, F.; BOUGEARD, S.; KEMPF, I. Impact of third-generation-cephalosporin administration in hatcheries on fecal Escherichia coli antimicrobial resistance in broilers and layers. Antimicrobial agents and chemotherapy, v. 58, n. 9, p. 5428-5434, 2014.

BERENDONK, T. U. et al. Tackling antibiotic resistance: the environmental framework. Nature reviews microbiology, v. 13, n. 5, p. 310-317, 2015.

BRASIL. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Guia de Uso Racional de Antimicrobianos Avicultura de Postura. Brasília, 2022(a). Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-pecuarios/resistencia-aos-antimicrobianos/guias-de-uso-racional-de-antimicrobianos-em-animais. Acesso em: 25 nov 2023.

BRASIL. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Guia de Uso Racional de Antimicrobianos para Cães e Gatos. Brasília. Brasília, 2022(b). Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-pecuarios/resistencia-aos-antimicrobianos/guias-de-uso-racional-de-antimicrobianos-em-animais. Acesso em: 25 nov 2023.

CAMPOS, J. L.; KATES, A.; STEINBERGER, A.; SETHI, A.; SUEN, G.; SHUTSKE, J.; RUEGG, P. L. Quantification of antimicrobial usage in adult cows and preweaned calves on 40 large Wisconsin dairy farms using dose-based and mass-based metrics. Journal of Dairy Science, v. 104, n. 4, p. 4727-4745, 2021.

COSTA, J. H. C.;  HÖTZEL, M. J.; LONGO, C.; BALCÃO, L. F. A survey of management practices that influence production and welfare of dairy cattle on family farms in southern Brazil. Journal of Dairy Science, v. 96, n. 1, p. 307-317, 2013.

CAUDELL, M. A.; DORADO-GARCIA, A.; ECKFORD, S.; CREESE, C.; BYARUGABA, D. K.; AFAKYE, K.; SWISWA, S. Towards a bottom-up understanding of antimicrobial use and resistance on the farm: A knowledge, attitudes, and practices survey across livestock systems in five African countries. PLoS One, v. 15, n. 1, 2020.

EMBRAPA. Anuário do Leite, São Paulo, 2020. p. 104, 2020.

KALKREUTER, E. et al. Targeting bacterial genomes for natural product discovery. Trends in Pharmacological Sciences, v. 41, n. 1, p. 13-26, 2020.

KICH, D. J. Uso responsável de antimicrobianos na suinocultura. In: SEMANA MUNDIAL DE CONSCIENTIZAÇÃO SOBRE O USO DE ANTIMICROBIANOS – WAAW 2023. [S.I.] Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), 21 nov. 2023. 30min. [Live]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fQK5_KOpP6w. Acesso em: 21 nov. 2023.

MAPA. Campanha Uso Racional – Regra 5 “somentes” (“Five Only” Rules). 2021. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-pecuarios/resistencia-aos-antimicrobianos/publicacoes/organizacao-mundial-de-saude-animal-oie. Acesso em: 26 nov 2023.

OCDE. Embracing a One Health Framework to Fight Antimicrobial Resistance. Paris. OECD Health Policy Studies, 2023. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/ce44c755-en.pdf?expires=1701783980&id=id&accname=guest&checksum=BBE5CBCF48CC570E4D2E5B08503963F3. Acesso em: 27 nov 2023.

OMSA. WE NEED YOU to follow the “Five Only” rules to handle antimicrobials with care. 2018. Disponível em:https://oie-antimicrobial.com/. Acesso em: 27 nov 2023.

OPAS/MAPA. Atualização sobre Uso Racional de Antimicrobianos e Boas Práticas de Produção. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/insumos-agropecuarios/insumos-pecuarios/resistencia-aos-antimicrobianos/publicacoes/Apostila_AtualizaosobreUsoRacionaldeAntimicrobianoseBoasPrticasdeProduo.pdf. Acesso em: 35 nov 2023.

VAN BOECKEL, Thomas P. et al. Reducing antimicrobial use in food animals. Science, v. 357, n. 6358, p. 1350-1352, 2017.

WOAH. OIE list of antimicrobial agents of veterinary importance. [S.I.] 2021. Disponível: https://www.woah.org/app/uploads/2021/06/a-oie-list-antimicrobials-june2021.pdf. Acesso em: 26 nov 2023.

WOAH. Resistência antimicrobiana. 2023. Disponível em: https://www.woah.org/en/what-we-do/global-initiatives/antimicrobial-resistance/. Acesso em: 23 nov 2023.

WHO. Progress Report by the Global AMR R&D Hub & WHO: Incentivising the development of new antibacterial treatments 2023. [S.I.] 2023. Disponível em:https://globalamrhub.org/incentivising-the-development-of-new-antibacterial-treatments-progress-report-by-the-global-amr-rd-hub-and-who/. Acesso em: 22 nov 2023.

VANESSA COMINATO
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia do Leite e
Derivados, Universidade Federal de Juiz de Fora e BCDTI – Fapemig.
KELY DE PAULA CORREA
Professora/pesquisadora do Instituto de Laticínios Cândido Tostes – EPAMIG-
MG.
GUILHERME NUNES DE SOUZA
VANESSA AGLAÊ MARTINS TEODORO